alb0n de família

10/02/2008

Transatriz

Ao ler a contra-capa do DVD de Transamerica, foi difícil acreditar que Felicity Huffman "merecia o Oscar", como disse o Estado de S. Paulo. Só tinha visto seu trabalho em Desperate Housewives e, apesar de fazê-lo muito bem, eu imaginava que ela era uma daquelas atrizes que não conseguem variar suas expressões. Errei feio. Felicity é a alma de Transamerica.

Transamerica tem a delicadeza da personagem Bree: recatada, suas roupas são todas em tons pastéis; sua casa é pequena, mas aconchegante, e todos os bibelôs estão em seus respectivos lugares; uma perfeccionista, não deixa de tomar seus hormônios um dia se quer. Cuidadosa, sensível e inteligente, freqüentou mais de 10 cursos universitários sem nunca ter terminado nenhum. Mora em Los Angeles, trabalha em telemarketing e como faz-tudo em um restaurante mexicano de Los Angeles. Bree seria uma dona-de-casa muito mais clichê do que Lynette Scavo, a personagem de Felicity na série Desperate Housewives, se não fosse o fato de Bree ser, na verdade, Stanley.

O enredo do filme é como uma receita de vatapá - se você não sabe fazer, não vá achando que é só colocar o fubá e depois o dendê. Sabrina "Bree" Osborne é uma transexual que está a uma semana de fazer uma operação de mudança de sexo. Com a carta de autorização da psicóloga quase em mãos, ela recebe um telefonema inesperado: um adolescente de 17 anos, em um reformatório em Nova Iorque, pede a ajuda do pai, Stanley - o nome de batismo de Bree. Um tanto quanto perdida, Bree conta o fato à sua psicóloga, quem a obriga a ir conhecer o seu filho, afinal, essa é uma "parte do seu corpo que não pode ser operada". Para conseguir definitavamente a autorização da psicóloga para fazer sua cirurgia, ela precisa entrar em contato com seu filho e provar que não tem problemas com o passado.

Contrariada, Bree vai até Nova Iorque e paga a fiança de seu suposto filho. O jovem Toby (Kevin Zegers, foto direita junto de Felicity Huffman ao fundo) é um deliqüente envolvido com prostituição e drogas. Ao se aproximar do garoto, Bree descobre que ele é mesmo seu sangue do teu sangue, mas prefere não contar a verdade para ele. O espírito paterno, porém, obriga a transexual ajudar Toby a ir para Los Angeles para que ele possa realizar dois sonhos: conhecer o "suposto" pai e ser estrela de filmes pornôs. Pai e filho, ambos à margem do ideal de perfeição da sociedade, atravessam a América, descobrindo a cada quilômetro um pouco de cada um.

Tudo para dar errado: um transexual, um jovem drogado, um road movie - se não fosse o equilíbrio dado pelo diretor e roteirista Duncan Tucker e, especialmente, ao trabalho de Felicity.

As cores pastéis da direção de arte e da fotografia predominam por quase todo o filme, dando calor humano e aconchego à estória - o mesmo que Bree oferece ao filho bastardo. Duncan não usa subterfúgios inovadores para contar a estória - e nem precisa. Enquanto cruza os Estados Unidos, passando por quase toda a duração do filme pelos desertos do meio-oeste, a camêra do diretor é singela. O recurso perfeito para retratar de forma singela um relacionamento que, à primeira vista, é bizarro. Bem elaborado, o roteiro é delicado, equilibrando drama e comédia. É também um road movie no qual cada parada na estrada traz uma novidade, prendendo o espectador ao colocar pai e o filho - numa situação, por si só e no mínimo, complicada de resolver - envolvidos em novos problemas. Mas tudo sem pressa, sem correria, com um olhar sóbrio. Tudo com cuidado para não cair do salto.

E é essa postura que Felicity adotou para viver Bree. Com delicadeza, sobriedade e muito cuidado, a atriz consegue nos fazer esquecer, com 5 minutos de filme, que ela é Lynette, Felicity ou qualquer outra mulher. Ela não é mulher. Ela é um transexual: o
dedo em riste ao carregar uma sacola, o rosto de dor silenciosa pelo trabalho que dá esconder as características físicas do corpo masculinol, os ombros que não se mexem para não demonstrar que são largos demais para uma mulher - todo o esforço cênico da atriz é cativante.
A atriz consegue, além de expressar a personagem com perfeitas técnicas corporais, entender a alma de um transexual. Felicity soube interpretar um homem que sofre desse transtorno psicológico por captar que a alma de Bree é de uma mulher. Os momentos do filme nos quais há a expressão da essência feminina da personagem são os que mais tocam.

O trabalho é tão brilhante que rompe a barreira da unidade e transforma o personagem em universal.
Na metade do filme, já nos colocamos no lugar de Bree e lembramo-nos de momentos em que nos sentimos tão desconfortáveis em relação ao mundo ao nosso redor quanto ela - como aquela festa na qual você não conhecia ninguém e não sabia onde colocar as mãos. E mais, graças a Felicity, passamos a nos perguntar como seria viver eternamente numa festa na qual não conhecemos ninguém e não saberíamos onde pôr as mãos - tal qual a vida de Bree, eternamente desconfortável em relação ao mundo ao redor dela.

Felicity Huffman ganhou o Globo de Ouro de 2006 por essa atuação. Também concorreu ao Oscar, no mesmo ano, na categoria de Melhor Atriz. Não levou. Perdeu para Reese Whiterspoon, por seu papel em Johnny e June. Mas, se houvesse uma categoria Melhor Atriz por Dentro, o Oscar era teu Felicity. Ah, se era...

Nenhum comentário: