alb0n de família

30/01/2008

Garotas Paradoxas

A série já foi cancelada. Mas durante sete anos, Gilmore Girls deu uma aula de sociologia aos seus fãs, mostrando como a sociedade americana tem um tanto de fel e um tanto de mel.

Não se pode dizer que a história de Lorelai Gilmore e sua filha, Rory, tem como pano de fundo o comportamento da sociedade americana - e nem a recíproca é verdadeira. A qualidade de Gilmore Girls está no fato de que as estórias dos personagens da série eram intricadas com o retrato crítico - e ora cômico, ora dramático - da vida nos EUA.

Amy Sherman-Palladino (foto esquerda), criadora da série, não criou sem querer o mundo mágico de Stars Hollow - cidade fictícia onde as garotas Gilmore viviam - em contraposição ao rico subúrbio de Hartford - capital do estado de Connecticut, onde viviam os pais de Lorelai. Ela sabia o que estava fazendo.

Sherman-Palladino era escriora de Roseanne, sitcom do começo da década de 90 sobre uma mãe-de-família da classe média americana que, além de cuidar da família, trabalhava fora. Aclamada pelos críticos da época como uma série renovadora, o programa abordou temas que, até então, estava fora dos scripts das séries cômicas: sexo, drogas, obesidade, stress.

O outono Gilmore

Em Gilmore Girls, a autora criou uma atmosfera de outono - registrada nas imagens em tons marrons da direção de fotografia - na qual não cabem as críticas ácidas da época de Roseanne. O drama, por si só, também não daria conta de explicar o american way of life. Então, como o outono, que tem em si a tristeza das folhas caindo das árvores, mas a alegria das ruas cheias de folha, os textos de Gilmore Girls foram moldados em drama-humorístico. (Se você mora numa região tropical, perdoe essa minha metáfora.)

Um drama muito bem equilibrado, não só na construção dos episódios, como também na criação do enredo. A estória de Lorelai começa quando ela, uma menina rica, engravida aos 16 anos do seu namorado. Seus pais, conservadores republicanos, fieis eternos de Ronald Reagan, obrigam a adolescente a se casar com o pai da criança. Lorelai, que desde pequena não foi feliz com o estilo de vida robuscado e áspero da elite americana, foge de casa e vai criar sua filha, do seu jeito, em Stars Hollow (foto direita), cidade fictícia, supostamente localizada também no estado de Connecticut.

É aí que começa a estória de Lorelai. Mas não a de Gilmore Girls. O primeiro episódio da série começa 16 anos depois, quando Rory Gilmore entra no High School. Lorelai, então, preocupada com o futuro acadêmico da filha, volta à casa dos pais, para pedir ajuda financeira e matricular Rory num colégio particular, no qual a garota teria, futuramente, mais chances de entrar em grandes universidades como Harvard ou Yale.

Se Gilmore Girls começasse na fuga de Lorelai da casa dos pais, primeiro, não seria uma série sobre o relacionamento entre uma mãe e sua filha e, segundo, o drama teria um espaço maior no programa. Afinal, uma adolescente criando uma filha sozinha dá muito menos espaço para piadas do que uma mãe de 30 anos, responsável, que aproveita a vida da forma divertida que sempre quis aproveitar, mas não tinha espaço para tais prazeres com a criação rígida dos pais.

Lorelai tem tiradas sarcásticas daquelas que a gente só faz quando estamos acostumados com as pessoas e/ou com os lugares. É como aquelas viagens trágicas para praia com os pais - você só pode fazer piadinhas ácidas, se você já sabe o que esperar. Se Lorelai fosse uma grávida de 16 anos, e não a mãe de uma menina de 16 anos, ela não teria tempo, nem experiência para rir do mundo curioso de Stars Hollow ou do jeito frio de sua mãe. Só restariam lágrimas para a jovem Lorelai.

Sem maniqueísmo

Andando firmamente entre o drama e a comédia, Gilmore Girls retrata criticamente os rico e as classe média norte-americana. Os pais de Lorelai, Richard e Emily Gilmore, ricos e frios, mostram o mundo polido e educado da américa. A família Gilmore é apreciadora dos grandes clássicos: da literatura, do cinema, da música, da política e de tudo que tenha relação com o conservadorismo. Enquanto isso, em Stars Hollow, o foco é o mundo, por vezes também conservador, mas também bastante acolhedor - por vezes, acolhedor demais - das pequenas cidades dos EUA. No meio disso tudo, Lorelai e Rory soltam piadas ao mundo pop, das artes, do cinema. As referências da série vão desde David Bowie à OffSpring, Casablanca à Glitter - o filme trash de Mariah Carey.

E não é figura de linguagem dizer que Lorelai e Rory estão no meio desses dois mundos. Elas estão mesmo. Com um pé em Stanford e outro em Stars Hollow, elas deglutem o que vem de um lado e o que vem de outro. Elas são a visão do telespectador em relação à sociedade americana. Ao mesmo tempo que são cultas e educadas, são acolhedoras e frutriqueiras. Elas sabem que corre sangue azul em suas veias, afinal, apreciam viagens à Europa, bons livros, bons filmes - tudo que a alta-cultura valoriza. Mas também sabem da sua queda por frango-frito: gostam de uma boa cultura pop de revista de fofoca.

Sem se deixar levar pelo maniqueísmo, Gilmore Girls mostra um Richard Gilmore preocupado com sua filha e neta, mas insaciável nos negócios, uma Emily Gilmore que se intromete na vida de Lorelai para que ela namore um bom partido, mas que exige dela também encontros semanais, para poder aproveitar o tempo com a família. Assim como nos delicíavamos assistindo a uma cidade com um prefeito que adora festas municipais - sejam elas exposições de quadros vivos ou festa do feno (sim, festa do feno)-, mas que faz todo seu trabalho sem ganhar um tostão, apenas pelo bem da comunidade.

E era essa a graça de Gilmore Girls: a complexidade. Nada era óbvio: a vilã tinha cenas de mocinha, os bons rapazes às vezes se comportavam mal, a própria Rory, tão apredejada pela sua "santidade à la Sandy", teve seus momentos de má-garota e até roubou um barco (!). Por isso mesmo, a série retratou com perfeição a sociedade americana: a mesma que matou tantos no Vietnã, foi berço para os movimentos Hippie.

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